Cota de Reserva no Sistema de Registro de Preços


Sandro Luiz Nunes

        No último dia 25 de junho de 2025, foi publicada uma manchete em jornal afirmando: “TCE suspende compra de 2,5 mil veículos para municípios de SC por suspeita de superfaturamento”.

     A frase chama a atenção e causa preocupação — afinal, ninguém quer ver dinheiro público sendo desperdiçado. Mas, para entender de fato o que está em jogo, é essencial conhecer o significado dos termos utilizados, principalmente quando se trata de contratações públicas.

        O jornal afirma que o TCE aponta superfaturamento, o que não é correto e, por isso, tal afirmação merece uma reflexão. Você pode ler a matéria aqui (link), mas, antes, parece me necessário compreender o conceito de superfaturamento para, então, entendermos o que de fato o TCE está tratando.


O que é, afinal, “superfaturamento”?

      Superfaturamento representa uma grave irregularidade no campo das contratações públicas. Trata-se de uma irregularidade que gera prejuízo ao erário, tais como: pagamento por quantidades não entregues ou serviços não realizados (fraude contratual); execução deficiente de obras, que reduz sua durabilidade (má qualidade); mudanças no contrato que favorecem o fornecedor indevidamente ou a concessão de reajustes ou antecipações de valores sem amparo legal, dentre outras formas (in)imagináveis.


O que está sendo analisado?

        No caso, apontou o TCE que o edital prevê a possibilidade de contratação de 2.517 veículos zero-quilômetro listados na licitação, sendo que 450 unidades seriam “reservadas” para o órgão gerenciador (responsável pela licitação). Ele não pretende, de fato, contratar esse quantitativo, mas está guardando para futuros interessados.

           O que o TCE está fiscalizando é se o quantitativo de veículos previsto em um edital de registro de preços corresponde, de forma razoável, à necessidade efetiva e provável dos participantes da licitação. Ou seja, o Tribunal está verificando se a estimativa apresentada foi bem fundamentada — algo que deve, sim, ser feito em toda contratação pública (art. 40, inc. III da Lei n. 14.133/2021).

       O jornal informa que não teve acesso ao quantitativo de veículos. Diz que “teve acesso à licitação, mas não ao anexo que lista o destino dos veículos do pregão” e que o TCE teria determinado também o sigilo da investigação.

       Entretanto, essa informação é pública e consta no item 1.6 do Anexo V do Edital (link). Ao todo, dos 2.517 veículos, o órgão gerenciador estaria “reservando” 450 unidades dentre os 26 tipos de veículos identificados no edital. Detalhe, o edital informa que esse quantitativo seria destinado ao órgão gerenciador licitante, não há previsão de “cota de reserva”.

        O TCE procura avaliar se a quantidade é superior à demanda atual do órgão gerenciador, ainda que o registro de preços não se refira a uma compra imediata.

E a economia de escala, você poderia indagar?

      Ao prever uma compra maior (mesmo que futura), o poder público poderia obter melhores preços por unidade, o que, em tese, favoreceria a Administração, alguém poderia cogitar. Assim, superdimensionar a quantidade nas licitações poderia, em tese, gerar economia — e não prejuízo. Mas, a lei admite essa prática?

 O art. 40, inc. III da Lei n. 14.133/2021 indica que o planejamento de compras deverá considerar a expectativa de consumo anual e que a determinação de unidades e quantidades a serem adquiridas se dará em função de consumo e utilização prováveis, cuja estimativa será obtida, sempre que possível, mediante adequadas técnicas quantitativas, admitido o fornecimento contínuo.

     Entretanto, no contexto das licitações para registro de preços, a prática de superdimensionar artificialmente o quantitativo de forma injustificada (não o preço dos produtos contratados) é conhecida pelo termo "barriga de aluguel". Isso ocorre quando há a inclusão artificial, exagerada ou injustificada de itens ou quantidades em um processo licitatório — especialmente quando os órgãos participantes inserem demandas que não pretendem realmente contratar, ou exageram na quantidade estimada sem justificativa técnica adequada.


Por que isso é um problema?

       Primeiro, pode induzir o mercado a erro, uma vez que os fornecedores elaboram propostas baseadas nesses quantitativos inflados (superdimensionados), o que pode levar a distorções nos preços ofertados e expectativas de fornecimento. Lembre-se da economia de escala: quanto mais se pretende contratar, maior a probabilidade de se obter menores preços.

       Por outro lado, também pode prejudicar a competitividade, já que empresas com menor capacidade econômica ou técnica pode desistir de participar por não conseguirem atender às exigências impostas no edital de licitação e por via reflexa, ainda pode violar princípios da administração pública, como a economicidade, a eficiência e o planejamento da contratação.

       Essa prática influenciará não só nas etapas de formulação do preço e da competividade, mas também agirá na dinâmica que a adesão às atas de registro de preços tomará, frente aos limites objetivos e subjetivos impostos pelo art. 86,  §§ 4º e 5º da Lei n. 14.133/2021.

        No caso citado na matéria o TCE suspendeu cautelarmente a licitação para compra de veículos porque entender que havia presente os requisitos processuais (verossimilhança do direito e risco de dano ao erário ou ao direito dos licitantes) identificadas na definição dos quantitativos estimados, levando o TCE a considerar a possibilidade de que os números estivessem inflados artificialmente — e é isso que deverá ser esclarecido.

       No Sistema de Registro de Preços, a prática identificada, a qual chamo de "cota de reserva",  informalmente a doutrina vem cunhando como “barriga de aluguel" compromete a transparência e a eficiência do processo, podendo levar à suspensão da licitação, como ocorreu no caso ora sob análise. Cabe lembrar que a Lei de Licitações exige fundamentação clara e adequada para os quantitativos estimados nos editais, o que deverá partir da análise da demanda e da melhor solução identificada já na fase preparatória da licitação.

       É possível estabelecer no edital do Sistema de Registro de Preços essa cota de reserva? Esta prática está de acordo com a nova Lei de Licitações? É isso que será objeto de exame pelo TCE.

        Por outro lado, o que se aprende com a notícia?

       Licitações e contratos públicos envolvem regras e conceitos técnicos que precisam ser corretamente compreendidos — especialmente por quem noticia os fatos, a quem cabe bem informar o cidadão. Termos jurídicos, algumas vezes, podem ser mal empregados e, assim, mesmo sem intenção, distorcer o entendimento da sociedade e comprometer a reputação dos órgãos de controle, dos órgãos fiscalizados, assim como dos agentes públicos, quando acusados injustamente.

         De qualquer modo, será interessante acompanhar a discussão e observar a decisão sobre este tema, que é relevante para o mundo das licitações públicas. Afinal, cabe ao órgão gerenciador o papel de reservar cota de quantitativos para futuros interessados na Ata de Registro de Preços? Quais os limites para a quantificação dos itens no SRP estabelecidos pela Lei n. 14.133/2021?