O leilão seria a modalidade adequada para a doação de imóveis com encargos?
Talvez essa seja uma das perguntas que tem mais atormentado o setor de licitações, principalmente das prefeituras.
A Lei n. 5.721/1971 no parágrafo único do seu art. 1º já previa que as alienações a título gratuito (modalidade que se encontra as doações e permutas, por exemplo) seriam disciplinadas por meio de lei especial, a exemplo das Leis ns. 6.897/81 e 7.462/86.
Como regra geral, inicialmente, o Decreto-Lei n. 2.300/1986 em seu art. 15 § 3º já previa que a "doação com encargo poderá ser licitada, e de seu instrumento constarão, obrigatoriamente, os encargos, prazo de seu cumprimento e cláusula de reversão, sob pena de nulidade do ato".
A Lei n. 8.666/93 igualmente previa em seu art. 17, § 4º que a doação com encargo poderá ser licitada, e de seu instrumento constarão, obrigatoriamente, os encargos, o prazo de seu cumprimento e cláusula de reversão, sob pena de nulidade do ato".
Com a Lei n. 8.883/94, o que seria uma faculdade, passou a ser uma obrigação, pois a nova redação dada ao § 4º do art. 17 da Lei n. 8.666/93 passou a ser a seguinte:
"A doação com encargo será licitada e de seu instrumento constarão, obrigatoriamente os encargos, o prazo de seu cumprimento e cláusula de reversão, sob pena de nulidade do ato, sendo dispensada a licitação no caso de interesse público devidamente justificado".
A nova lei de licitações (Lei n. 14.133/2021) repetiu essa redação em seu art. 76, § 6º, ao dispor:
A doação com encargo será licitada e de seu instrumento constarão, obrigatoriamente, os encargos, o prazo de seu cumprimento e a cláusula de reversão, sob pena de nulidade do ato, dispensada a licitação em caso de interesse público devidamente justificado.
A doutrina diverge sobre este dispositivo.
O professor Marçal Justen Filho, desde a vigência da Lei n. 8.666/93 já lecionava que "quando for o caso de promover licitação, os interessados deverão apresentar propostas acerca da execução do encargo" (Comentários à lei de licitações e contratos administrativos, 17a, 2016, p. 393 e Comentários à lei de licitações e contratações públicas: Lei 14.133/2021, 2021, p. 1118.
O professor Joel de Menezes Niebuhr, por sua vez, defende a impropriedade da norma ao lecionar que "a estranheza reside na pretensa exigibilidade de licitação pública para doação com encargo, haja vista que os interessados não têm parâmetros para oferecer suas propostas" (Licitação pública e contrato administrativo, 5a, Fórum, 2022, p. 323/324). Para o professor, o licitante não poderia assumir mais ou menos encargos durante a licitação, bem como a doação seria gratuta, não havendo que se falar no licitante ter a obrigação de pagar para receber algo em doação (op. cit., p. 324).
A modalidade leilão é aplicável para alienação de bens imóveis ou de bens móveis em que a Administração tenha por objetivo obter uma remuneração quantificável em dinheiro, considerando que o critério de julgamento admitido é o de maior lance (art. 6º, inc. XL, art. 31, § 2º, inc. II “o preço mínimo pelo qual poderá ser alienado”.
A doação de bens,
seja imóvel ou imóvel, a Administração Pública não objetiva auferir renda com a
alienação pretendida. Logo, inapropriado o uso do leilão como modalidade
licitatória.
A doação de bens é,
de regra, matéria sujeita à dispensa de licitação, seja ela a prevista no art.
76, inc. I, alínea “b” da Lei n. 14.133/2021 para bens imóveis na hipótese
legalmente admitida, seja a do inc. II, alínea “a” do mesmo dispositivo legal,
em relação aos bens móveis, que somente são admitidos para fins e uso de
interesse social.
A doação com encargo
é matéria sui generis, pois a competição se dá, não em relação à intenção da
administração em obter uma remuneração pela alienação, mas sim em relação à seleção
do beneficiário futuro da doação, uma vez que o encargo poderá ser assumido por
qualquer pessoa que demonstre condições de atender no prazo e com a qualidade
exigida os requisitos fixados pela Administração (encargos exigidos).
Note-se que o
interesse da Administração não é obter o maior lance, mas identificar aquele candidato
interessado que demonstre ter melhores condições de atender ao interesse
público que motiva a decisão em alienar o imóvel, que, repita-se, não via a
obter meramente a entrada de recursos financeiros em seu caixa, mas dar ao
imóvel público a melhor destinação.
Assim, a doação pode
envolver, por exemplo, o encargo de construir e manter um centro de atendimento
médico no município. Caberá à Administração fixar os encargos, prazos e
qualidade que entende necessários para que este interesse seja atendido. A
melhor proposta, passa a ter o direito de receber o imóvel em doação, assumindo
o vencedor a responsabilidade de atender integralmente com as obrigações fixadas
no edital e no contrato, sob pena de ser reconhecida a reversão do bem, isto é,
o descumprimento motiva o retorno do imóvel ao patrimônio público.
Como o § 6º do art.
76 da Lei n. 14.133/2021 impõe a licitação, parece-me que esta somente possa se
limitar à discussão sobre como os encargos ou contrapartidas serão adimplidas
pelo donatário.
Entretanto, esse
dispositivo possui uma das redações mais contraditórias previstas na Lei n.
14.133/2021, e assim, já era quando da Lei n. 8.666/93, o que gera muita insegurança
jurídica.
Isso porque a doação de bem imóvel com encargo ou sem
encargos por parte do donatário somente poderá ser autorizada se existir um motivo
de interesse público, devidamente demonstrado pela autoridade pública.
Entretanto, a norma também prevê
exceção expressa à regra estabelecida na sua parte inicial que manda
licitar a doação com encargo, mas, igualmente autoriza a dispensa de
licitação "em caso de interesse público devidamente
justificado", o que flexibiliza a obrigatoriedade da disputa
competitiva nesses casos.
Nesse caso, não se trata de
simples demonstração de interesse público na realização da doação, mas de
situação concreta que justifique a escolha do donatário. Trata-se a rigor, não
de hipótese de dispensa de licitação, mas de inexigibilidade, dada a
inviabilidade fática de se estabelecer uma competição entre potenciais
interessados em assumir o bem imóvel e dar cumprimento aos encargos definidos.
Por exemplo, o caso em que a
Administração municipal pretenda doar o imóvel para organização não
governamental existente na localidade para que ela construa a sede operacional
dos Bombeiros Voluntários existentes no município. A doação é direcionada para
uma única e determinada entidade, não havendo competição, considerando o
interesse público que se pretenda atender com a doação. Ao aceitar a ONG que
presta os serviços de bombeiros voluntários assumirá a responsabilidade de
atender aos encargos estabelecidos no instrumento de doação, sob pena de
reversão.
Nos casos em que não há um único destinatário possível para dar cumprimento aos encargos, isto é, nos casos em que se apresenta possível a competição entre potenciais interessados, a licitação deverá ser realizada para a seleção da melhor proposta referente ao modo de execução dos encargos, e nesses casos, seria a concorrência com o critério de melhor técnica, o modelo de licitação mais adequado, dada as singularidades do objeto.