A definição do valor das obras de grande vulto nos regulamentos municipais. Aplicação dos princípios da razoabilidade e proporcionalidade.
Sandro Luiz Nunes
Advogado. Auditor Fiscal de Controle Externo
no TCE/SC. Especializando em Licitações e Contratações Públicas pela Escola
Mineira de Direito.
Este
texto tem por objetivo expor a definição de obras de grande vulto promovidas
por alguns municípios catarinenses frente ao conceito legal contido no art. 6º,
inc. XXII da Lei n. 14.133/2021.
A
Constituição Federal tem como principal característica disciplinar a forma de
organização do Estado Brasileiro, sendo a definição de regras de
competências um dos instrumentos de que
dispõe a técnica organizacional constitucional. Ao dispor sobre a organização,
a constituição disciplina a divisão não só espacial como material do poder
entre os entes federativos por ela criados. União, Estados, Distrito Federal e
Municípios possuem parcelas de atuação
definidas, posto que são considerados entes autônomos e regulados por leis por
estes editados.
Assim,
temos diversas formas de repartição de competências materiais e legislativas
entre os entes federativos.
Por
competência legislativa entende-se “a capacidade do ente político estabelecer
normas imperativas, gerais e abstratas, com base nos limites estatuídos na
Constituição Federal”[1].
Há diversas classificações quanto às
competências legislativas, umas privativas de determinado ente político, outras concorrentes,
onde mais de um ente pode legislar sobre determinada matéria. Há competências suplementares,
residuais (remanescente), delegadas e originárias.
No
âmbito das licitações e contratações públicas, a Constituição Federal reconheceu
a competência privativa da União para fixar normas gerais de licitação e
contratação, em todas as modalidades, para as administrações públicas diretas,
autárquicas e fundacionais da União, Estados, Distrito Federal e Municípios,
obedecido o disposto no art. 37, XXI, e para as empresas públicas e sociedades
de economia mista, nos termos do art. 173, § 1°, III.
Apesar
de o texto constitucional expressar que o art. 22, inc. XXVII como sendo uma
espécie de competência privativa, a doutrina aponta para que neste caso se
trata de verdadeira competência concorrente, pois ao lado da competência da
União em estabelecer regras gerais em matéria de contratações públicas,
permanece a competência dos demais entes federativos para definirem regras
específicas sobre a matéria.
Em se tratando
de licitações e contratações há muito se questiona a atuação do legislador
federal que por várias vezes a pretexto de estabelecer regras gerais, caba por
invadir ou restringir a atuação dos demais entes federativos.
Afinal,
estabelecer um limite claro e objetivo entre o que é e o que não é regra geral
em matéria de licitação e contratação pública nunca foi tarefa fácil e, com a
nova lei de licitações e contratações públicas que entrou em vigor em 1º de
abril de 2021 (Lei n. 14.133/2021), o mesmo problema se verifica. A lei é longa
e detalhista e, apesar de ter remetido dezenas de situações a ser regulamentada
pelos entes federativos, acabou por gerar situações que certamente causarão
problemas de interpretação.
Por exemplo,
trazemos a definição de obra de grande vulto prevista no art. 6º, inc. XXII da
Lei n. 14.133/2021, que assim dispõe:
Art. 6º Para os fins desta Lei, consideram-se:
[...];
XXII - obras, serviços e fornecimentos de grande vulto:
aqueles cujo valor estimado supera R$ 200.000.000,00 (duzentos milhões de
reais);
À
primeira vista, este dispositivo não nos traria grandes dúvidas quanto à
interpretação. Sempre que a lei fizer menção à obra de grande vulto e suas
consequências/exigências, bastaria atermos ao valor estimado da contratação. Se
para a União, serão consideradas de grande vulto são todas as obras com valores
acima de duzentos milhões de reais, assim deveria ser para todos os demais
entes federativos. Certo?
Se
considerarmos que esta regra poderia ser objeto de regulamentação específica
por parte dos demais entes federativos, dada as diferentes realidades que cada
ente federativo vivencia, poderíamos considerar que os demais entes federativos
poderiam dispor de modo diverso, trazendo a definição de obra de grande vulto
para a sua realidade. Afinal, uma obra de 50, 100 ou 150 milhões poderá ser
considerada como de grande vulto para milhares de municípios brasileiros, se
não para a maioria deles.
A
importância de saber se uma obra será ou não considerada de grande vulto se
apresenta relevante posto que, para a
contratação de obras e serviços desse porte o edital deverá obrigatoriamente
contemplará matriz de alocação de riscos entre o contratante e o contratado,
bem como o edital deverá prever a obrigatoriedade de implantação de
programa de integridade pelo licitante vencedor, no prazo de 6 (seis) meses,
contado da celebração do contrato, ou ainda, poderá a Administração exigir do
licitante a prestação de garantia, na modalidade segura-garantia, equivalente a
até 30%, com a previsão de cláusula de retomada (art. 99 c/c 102 da Lei n.
14.133/2021). Portanto, saber se uma obra ou serviço será ou não considerada de
grande vulto tem relevância a elaboração do edital e para a execução
contratual, especialmente sobre questões que futuramente poderão impactar o
equilíbrio econômico-financeiro do contrato e na execução da obra.
Pois
bem, aqui chegamos ao ponto principal.
Municípios no exercício da
competência legislativa suplementar poderiam dispor de modo diverso quanto à
definição de obras de grande vulto para fins de aplicação das regras gerais de
licitação previstas na Lei n. 14.133/2021?
A
definição de competência dos municípios para legislarem sobre normas
específicas sobre licitações e contratações possui relação com a preponderância
de interesses que cada ente político está a defender.
À
União cabe a harmonização do sistema nacional de contratações, dispondo sobre
regras de maior amplitude a fim de conferir racionalidade e uniformidade
processual-administrativa visando conferir maior segurança jurídica a todos
aqueles que pretendam participar das contratações realizadas pelos entes
públicos. Aos Municípios, caberá trazer respeitar as normas abstratas e gerais
firmadas pela União, e, caso entenda necessário, poderão definir novas regras
de modo a ajustar as licitações às suas realidades locais.
Assim,
no exemplo, o Município de São Paulo poderia entender como obras de grande
vulto aquelas que atendam as regras definidas
no art. 6º, inc. XXII da Lei n. 14.133/2021 para da União, ou, entender
que, considerando a sua realidade orçamentária, as obras de grande vulto seriam
aquelas com valores superiores a 100 milhões ou outro valor a ser definido pelo
legislador municipal.
Considerando-se
o volume orçamentário da União frente aos demais entes federativos municípios,
principalmente em relação aos médios e pequenos municípios brasileiros, nos
parece razoável aceitar que o valor das
obras de grande vulto possam ser reduzidos, quando comparado ao valor definido
para a União. Para se ter uma ideia, uma obra de 200 milhões para a União, em
2021, corresponderia a 0,005% do seu orçamento anual.
Agora
o contrário, nos parece de difícil acolhimento, isto é, poderíamos entender
como legítima a definição pelos municípios de patamar superior ao definido para
a União para fins de classificação de obras de grande vulto?
Parece-nos
que não!
E
exemplos já pululam nos municípios catarinenses que bem demonstram a
impropriedade deste agir.
O
primeiro município catarinense a modificar o valor das obras de grande vulto
foi o Município de Guabiruba (SC) que, por meio de simples decreto, promoveu
alteração do conceito de obra, serviços e fornecimentos de grande vulto,
majorando em 65% o valor definido para a União.
O
orçamento anual do Município de Guabiruba (SC) para o exercício de 2021 é de R$
80.275.000,00 (Oitenta milhões, duzentos e setenta e cinco mil reais), conforme
previsto na Lei Municipal n. 1.732, de 03 de dezembro de 2020.
Por
meio do Decreto n. 1.250, de 20 de maio de 2021 que
foi editado para regulamentar a Lei nº 14.133, de 1º de
abril de 2021, que dispõe sobre licitações e contratos administrativos, no
município de Guabiruba (SC), o valor das obras, serviços e fornecimentos de
grande vulto passaram a ser considerados aqueles com valores superiores a R$
330.000.000,00 00 (trezentos e trinta milhões e reais), conforme se pode
verificar da redação do § 2º do art. 22 do referido decreto, que assim reza:
Art. 22. Nas contratações de obras, serviços e fornecimentos
de grande vulto, o edital deverá prever a obrigatoriedade de implantação de
programa de integridade pelo licitante vencedor, no prazo de 6 (seis) meses,
contado da celebração do contrato, adotando-se como parâmetro normativo para a
elaboração do programa e sua implementação, no que couber, o disposto no
Capítulo IV do Decreto Federal nº 8.420, de 18 de março de 2015.
§1º [...].
§2º Considera-se grande vulto a contratação cujo valor
estimado seja igual ou superior a R$ 330.000.000,00 (trezentos e trinta milhões
e reais).
Assim,
para que o Município passe a exigir dos contratados matriz de riscos e a
implementação de programas de integridade (Compliance), ou mesmo que
possa exigir garantia adicional, o município de Guabiruba teria que realizar
uma contratação equivalente a 4,11 vezes o valor do seu orçamento anual.
No
mesmo caminho trilhou o município de Bom Retiro (SC)
ao editar o Decreto nº 95/21 de 22.09.21 (art. 22, §
2º), ao definir como de grande vulto a contratação cujo valor estimado seja
igual ou superior a R$ 330.000.000,00 (trezentos e trinta milhões e reais). O
orçamento anual do município de Bom Retiro (SC) para 2021, de acordo com a Lei
municipal n. 2.465/2020, de 15/12/2020, é de R$ 31.669.140,00 (Trinta e um
milhões, seiscentos e sessenta e nove mil, cento e quarenta reais). Assim, uma
obra de grande vulto corresponderia à 10 vezes o valor do orçamento anual do
município.
Por fim, um município
de médio porte, como Jaraguá do Sul (SC), onde para o exercício de 2021 a Lei
municipal n. 8.456/2020 estimou a receita e fixou a despesa em R$
833.804.390,00 (oitocentos e trinta e três milhões, oitocentos e quatro mil,
trezentos e noventa reais).
Neste
município, de acordo com o Decreto nº 15.430/2021,
de 08 de outubro de 2021, as obras, serviços e fornecimentos de grande vultou
também seriam aqueles com valores iguais ou superiores a R$ 330.000.000,00 (trezentos
e trinta milhões de reais), ou seja, obras que consumissem o equivalente a 40%
do orçamento anual.
Nota-se que estes
municípios citados adotaram um modelo muito similar de regulação, inclusive em
relação ao valor de R4 330.000,00.
As alterações acima promovidas
por meio de decretos, ainda que se admita o exercício de competência
suplementar, deveriam passar pelo análise do Poder Legislativo local, não
podendo a Lei n. 14.133/2021 ser modificada por meio de ato regulamentar.
Como
se pode observar, as regras fixadas em decretos que alteraram a definição de
obras de grande vulto para fins de aplicação da Lei n. 14.133/2021 promovidas por
municípios pequenos e médios, demonstram-se desproporcionais e irrazoáveis
frente as regras de governança e de responsabilidade fiscal, afinal, não faz
qualquer sentido a União exigir diversas garantias dos licitantes e contratados
para contratos que não ultrapassam a 0,005% do seu orçamento, ao passo que
municípios deixem de assim agirem para contratações que muitas vezes superarão seus
orçamentos anuais.
Na
prática, as modificações realizadas por meio de decretos municipais tornam
letra morta alguns dispositivos da Lei n. 14.133/2021 (art. 6º, XXII; 22, § 3º;
25, § 4º e 99), regras estas que visam ofertar maiores garantias à
Administração Pública, seja pela definição de regras de distribuição de
responsabilidades frente aos riscos advindos de contratações de grande porte
financeiro, ou exigência de implementação de regras mais rígidas e objetivas de
controle empresarial ou mesmo como a possibilidade de se exigir garantia
adicional dos licitantes/contratantes.
Ao
passarem a considerar obras de grande vulto com valores superiores a 200
milhões de reais, os municípios estão na contramão do que pretendeu o
legislador da Lei n. 14.133/2021, de forma que, ao invés de conferirem maior
segurança e garantias à Administração Pública, estão afrouxando as regras.
Os órgãos de
assessoramento jurídico e de controles internos e externos deverão ficar
atentos a estas questões.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Lei
n.º 14.133, de 1º de abril de 2021. Lei de Licitações e Contratos. Acesso em:
29 junho 2021.
BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de direito constitucional, 12 ed. São
Paulo: Saraiva Educação, 2019.
GUABIRUBA (Santa Catarina). Lei Municipal n.
1.732, de 03 de dezembro de 2020. Estima a receita e fixa a despesa do município de
Guabiruba para o exercício financeiro de 2021. Disponível em
https://leismunicipais.com.br/a/sc/g/guabiruba/lei-ordinaria/2020/174/1732/lei-ordinaria-n-1732-2020-estima-a-receita-e-fixa-a-despesa-do-municipio-de-guabiruba-para-o-exercicio-financeiro-de-2021?q=1.732.
Acesso em 25/10/2021.
GUABIRUBA (Santa Catarina). Decreto n. 1.250,
de 20 de maio de 2021. Regulamenta a Lei nº 14.133, de 1º de abril de 2021,
que dispõe sobre licitações e contratos administrativos, no município de
Guabiruba e dá outras providências. Disponível em
https://leismunicipais.com.br/a/sc/g/guabiruba/decreto/2021/125/1250/decreto-n-1250-2021-regulamenta-a-lei-n-14133-de-1-de-abril-de-2021-que-dispoe-sobre-licitacoes-e-contratos-administrativos-no-municipio-de-guabiruba-e-da-outras-providencias?q=1.250.
Acesso em 25/10/2021.
BOM RETIRO (Santa Catarina). Lei municipal n.
2.465/2020, de 15/12/2020. Estima a receita e fixa a despesa do município de
Bom Retiro para o exercício de 2021. Disponível em https://www.bomretiro.sc.gov.br/legislacao/index/detalhes/codmapaitem/15703/codnorma/489733.
Acesso em 25/10/2021.
BOM RETIRO (Santa Catarina). Decreto nº 95/21
de 22.09.21. Regulamenta a Lei nº 14.133, de 1º de abril de 2021, que dispõe
sobre licitações e contratos administrativos, no município de Bom Retiro e dá
outras providências. Disponível em
https://www.bomretiro.sc.gov.br/legislacao/index/detalhes/codMapaItem/15703/codNorma/529057.
Acesso em 25/10/2021.
JARAGUÁ DO SUL (Santa Catarina). Lei
municipal n. 8.456/2020. Estima a Receita e Fixa a Despesa do Município de
Jaraguá do Sul, seus Órgãos e Entidades, para o Exercício de 2021. Disponível em https://leismunicipais.com.br/a/sc/j/jaragua-do-sul/lei-ordinaria/2020/846/8456/lei-ordinaria-n-8456-2020-estima-a-receita-e-fixa-a-despesa-do-municipio-de-jaragua-do-sul-seus-orgaos-e-entidades-para-o-exercicio-de-2021?q=8.456.
Acesso em 25/10/2021.
JARAGUÁ DO SUL (Santa Catarina). Decreto nº
15.430/2021, de 08 de outubro de 2021. Regulamenta a Lei Federal nº 14.133, de 1º de Abril
de 2021, que dispõe sobre licitações e contratos administrativos, no âmbito do município
de Jaraguá do Sul/SC, e dá outras providências. Disponível em https://leismunicipais.com.br/a/sc/j/jaragua-do-sul/decreto/2021/1543/15430/decreto-n-15430-2021-regulamenta-a-lei-federal-n-14133-de-1-de-abril-de-2021-que-dispoe-sobre-licitacoes-e-contratos-administrativos-no-ambito-do-municipio-de-jaragua-do-sul-sc-e-da-outras-providencias?q=15.430.
Acesso em 25/10/2021.
[1]
Uadi Lammêgo Bulos. Curso de direito
constitucional, 12 ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2019, p. 996.